quarta-feira, 31 de março de 2010

O uivo

Levantou-se com um sobressalto, que a fez erguer a coluna num impulso sôfrego, um nó de desespero atado na garganta. Segurou-a com uma das mãos, como se contivesse a respiração ainda ofegante. A escuridão estava toda emersa numa tonalidade azul, criando uma atmosfera quase irreal no interior do quarto. Uma estranha luminosidade vinha do exterior, e penetrava no quarto pelo espaço entre as velhas cortinas desbotadas. Dirigiu-se à janela como se algo a chamasse. Espreitou por trás do veludo envelhecido do reposteiro e viu um vidro quebrado, estilhaçado no canto inferior esquerdo. Formava um desenho perfeito de uma teia. Tocou-lhe e automaticamente levou o dedo à boca, sugando o sangue do corte que acabara de sofrer. Soltou um breve gemido de dor, frustrado de fúria. Lá fora, a lua erguia-se gigantesca, majestosa, rodeada de uma aura azul intensa, que cobria todas as coisas de improváveis reflexos. Sentiu um incómodo arrepio, como uma fria corrente enferrujada a mover-se no interior da espinha. O espaço à sua volta, de súbito, ganhava novos contornos. Estremeceu perante um breve desacerto do mundo. Julgou ouvir ruídos, um estalar de madeira, ecos de passos atrás de si, o som das sombras a mover-se pelas paredes do quarto. Voltou-se e tremeu. Deu dois passos incertos, esquecida do próprio corpo. O chão estava alagado; os pés descalços enregelados. Ouvia uma torneira aberta, que pingava lentamente. O som adensava-se segundo a segundo, ecoava pela casa toda, cada vez mais próximo, cada vez mais grave, cada vez mais alto, com requintes de tortura. Segurou a cabeça entre as mãos, crispando os dedos entre os cabelos, tapando os ouvidos quase até ao limiar da dor. Enlouquecia. Abriu as portadas e saiu. Correu para a floresta que se estendia, negra e silenciosa, a sul da casa. Não se vestiu. A camisa branca de algodão finíssimo esvoaçava enquanto corria. Um som distante, longínquo, como um uivo, envolvia agora todo o espaço entre as árvores. Tudo à sua volta permanecia assombrosamente azul. Olhava para o céu e os seus olhos cintilavam, fazendo perguntas às estrelas ausentes. Correu a um ritmo alucinante, rasgando a noite escura com a sua deslumbrante figura pálida. Se pudéssemos congelar o momento, encontrar-se-ia a mais bela fotografia do mundo. Era atrás do lobo que corria. Um lobo que conhecia sem nunca ter visto, que a chamava sem nunca ter tocado um fio dos seus cabelos. Sonhara com ele durante seis noites seguidas, um segundo mais cada noite, até que o sonho a puxou para dentro e ela foi ao seu encontro. Correu atrás dele, movida pelo sonho, dominada pela loucura. Corria como se perseguisse a própria vida, e gritava. Gritava o nome do seu amor, como se lhe respondesse. Correu até ficar sem forças, lentamente vergou os joelhos e deixou-se cair no chão húmido. Tinha chovido nas horas anteriores, muito certamente. Cravou as mãos na terra até que esta lhe doesse, negra e perfumada, entre as unhas. Sentiu um frio muito fino percorrer-lhe a parte de trás do pescoço, desde a nuca, descendo até à cintura. Depois um calor imenso a escorrer-lhe pelos braços. Tinha o lobo junto do seu corpo, o seu olhar ferido de medo. Aproximou-se do seu rosto, conseguia sentir-lhe a respiração na face gelada. Mergulhou os dedos finos no pêlo em redor do pescoço, num gesto ambíguo. Como se segurasse, como se repudiasse. Sentia-o roubar-lhe o sopro de vida, ao mesmo tempo que a alimentava de uma inexcedível sensação de eternidade. A escuridão era tão intensa que a noite parecia estender-se sobre todas as coisas, sem limites, insondáveis as suas profundezas. Reinava uma calma inquietante. O seu coração pulsava acelerado dentro do peito, o olhar num fervilhar insustentável de paixão. Olhou à volta, demorando um segundo a reconhecer o espaço do quarto. Um segundo depois, o outro lado do pesadelo: Está um homem ao seu lado. Está frio. O branco dos lençóis tingido de vermelho. Do corpo imóvel e pálido escapa-se um fio rubro e espesso. O olhar preso no infinito. Um último gesto de angústia suspenso na mão. A boca entreaberta, fixo nos lábios um suspiro, com o nome do seu amor.

terça-feira, 30 de março de 2010

segunda-feira, 29 de março de 2010

Conceito

“…Amar ou não amar?… Sim e não… Tudo depende do conceito que fazemos do que é “amar”… Se entendermos que o amor, o verdadeiro amor (e aqui poderemos perguntar o que é um verdadeiro amor que não será a mesma coisa que um amor verdadeiro…) é amar sem posse, ou seja, amar pelo acto de amar e não pelo acto de querer ou possuir ou ainda querer possuir, ou seja, “eu amo simplesmente porque quero amar e desta forma me sinto realizado e feliz”, nunca perderemos nada porque nada temos, nada possuímos… amámos apenas… se sentir posse do alvo amado eu posso-o perder porque o julgava meu… no momento em que decido amar por amar eu deixo de possuir, deixo de ter o que quer que seja, e, mesmo que “perca” eu não perco… apenas continuarei a amar mesmo que o alvo do meu incondicional amor já não exista ou já não esteja presente… Que forma mais sublime de amor não será aquela em que apenas desejamos que o outro seja feliz, mesmo que não connosco?… Se a pessoa que amo se sente feliz longe de mim, que acto mais sublime de amor não será continuar a amar essa pessoa? Não será amor verdadeiro aquele que apenas ama?… Mesmo no conceito de que somos um todo (conceito que partilho) amar será apenas um acto egoísta na medida em que me estou a amar a mim mesmo face ao entendimento de que não somos partes… Daí que amar deverá ser um acto individual e único, ou seja, não o entender como um acto de partilha (estilo, eu te amo se tu também me amares…) mas sim um acto de dádiva… Eu me dou a alguém incondicionalmente, eu amo alguém independentemente de esse alguém me amar em reciprocidade… Gostar de alguém será apenas e unicamente obter algo desse alguém, ou seja, eu “retiro” algo desse alguém, logo gosto “disso”… Amar é “dar” algo a alguém sem esperar nada em troca… Por isso, nunca perderei se nada tiver…”

domingo, 28 de março de 2010

sábado, 27 de março de 2010

Apenas e só uma simples carta

"...A carta que te escrevo aqui e agora é o que "eu" sinto e penso da vida e não "serve" para todos... não há respostas definitivas e únicas para todos nós... vivemos num mundo de desafectos em vez de vivermos num de afectos... vivemos num mundo onde o sentirmo-nos bem com a nossa própria identidade é já tão dificil que usamos estas identidades "falsas" para podermos falar e ouvir... Já nos falta a "coragem" de enfrentarmos os outros, de olharmos os olhos uns dos outros e dizermos a quem estiver na nossa frente o que sentimos, o que pensamos, o que queremos, o que temos, o que podemos ser e, principalmente, o que podemos dar... A vida já vai longa para mim e já vivi muito e quase tudo o que um homem pode viver... passei de tudo um pouco e os anos foram-me tornando "duro" e um pouco "sóbrio" perante as bebedeiras da vida... A vida não é fácil e tudo o que a vida nos dá é pouco porque queremos sempre mais e melhor... passamos a vida a lutar por um lugar ao sol e esquecemos o quanto bom é refrescarmo-nos numa sombra... Passamos o tempo a querer, passamos o tempo a desejar, passamos o tempo a ter, a possuir, a querer ter ainda mais... E esquecemo-nos de dar!... E, um dia, ficamos de mãos vazias e ficamos sem nada e lamentamos termos ficado sem tudo o que haviamos tido... que desgraça enorme... perdi tudo... perdi os bens... perdi a namorada... perdi os filhos... perdi a mulher... tanto amor perdido!... Tudo o que tinhamos se foi... E passamos a ser uns eternos infelizes!... Errado!... Nunca tivemos nada!... Porque não somos donos de nada!... Nada temos!... Nada possuimos!... Nada é nosso!... Só dando é possivel ser feliz!... Desejar tudo de bom para o outro!... Querer que a mulher que pensava ter "perdido" esteja feliz agora mesmo sem ser a meu lado!... Darmo-nos aos outros de todas as formas, de todas as maneiras... Não pretender ser amados... Amar somente... A felicidade está em amar, tão somente em amar e sentir que amar é estar feliz consigo mesmo... Amar sem posse nem destino... Amar incondicionalmente... Não chorar sobretudo porque é preferivel sorrir e mesmo que por dentro a alma se parta aos bocadinhos que nos reste um sorriso nos lábios para dar aos outros... Foi isso que aprendi ao fim de muitos anos... Não fui, não sou nem quero ser dono do que quer que seja... Quero olhar e desejar que todos estejam melhor do que eu... Escolho o melhor para ti... Ao fazer isto faço-o com alegria, com gosto e sou feliz!... É esta a resposta: não há caminhos para a felicidade... esta, é o caminho... Não interessa que caminhos havemos de percorrer, o que interessa é caminhar com a certeza de que "escolher" o melhor para o outro é a base do meu bem estar... Sentir que com essa "escolha" eu estou a caminhar e não à procura do caminho... Estas palavras não "servem" para todos, eu sei... Mas não sei outras... Tudo o que possas ler nos meus escritos são uma mistura de credulidade e de incredulidade... são uma mistura de fé e de raiva... são uma mistura de sim e de não... Pela simples razão de que precisamos dela, dessa "balança" para o nosso equilíbrio... Mas, o cerne da questão está lá, nas entrelinhas e estas são as que acabo de te escrever... Não sei se era "isto" que querias ouvir, se era esta a "mão" que precisavas... acredita que é a única que tenho e dei-te o que tinha: tempo, palavras e um desejo firme de felicidade... E, para já, escolho para ti um sorriso..."

sexta-feira, 26 de março de 2010

quinta-feira, 25 de março de 2010

A lentidão do tempo

“… o tempo demasiadamente lento… as horas e os dias demoram eternidades… sente-se a pressa e as saudades… é preciso que as horas voem… é preciso que a manhã do dia seguinte surja rápida com a certeza de mais um dia que passou… é menos um dia na contagem voraz de quem sente desejo de um novo encontro para sentir a tal paz… a serenidade do abraço que nada tem de sereno mas de forte, de pura ternura e ao mesmo tempo de paixão… rege-se então a dádiva da presença… gostosa… imensa… e os corpos se abraçam num rodopiar sem fim, num beijo prolongado, doce, com sabor a jasmim… e a ternura e o amor não termina ali… prolonga-se na alma do sentir que se ama… perde-se então a noção do tempo que se ganhou na espera… é um momento mágico aquele em que enlaçados, deixamos de ser o que somos para passarmos a ser o beijo de um tão doce e eterno desejo…”

quarta-feira, 24 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

Elegia

"...eram extremamente apelativos… estavam ali à minha disposição… em cima da mesinha de cabeceira... era uma caixinha escura que ela usava para ter à mão os comprimidos que a faziam dormir... nunca liguei qualquer importância ao valor daquela caixinha e, no entanto, ela continha o passaporte para uma viagem, uma sem retorno... nunca houvera pensado nisso, excepto naquela noite… uma noite em que ela não estava ali deitada comigo (nunca mais estaria)… uma noite em que acabara de chegar de mais um bar e depois de ter ingerido um bom pedaço de álcool para me aquecer a alma tão fria e tão dormente que já nem a sentia... também, para que queria eu uma alma?... que é que ela me dá ou me faz?... a caixinha preta continuava ali... quantos comprimidos teria ela deixado desde a última vez que a encheu depois de os tirar da embalagem de marca do medicamento?... a minha mão direita estendeu-se para aquela caixinha preta tão apelativa como tão consoladora pelo imaginário que já me estava a provocar... não custaria nada e dormiria para sempre… tão bom... era disso que eu estava a precisar ou seria de mais um pouco de gin?... mas para tomar os comprimidos eu precisava de beber alguma coisa e essa coisa estava também ali à mão… debaixo da cama, talvez também deitada no chão por cima do tapete… teria ainda algum líquido?... o suficiente para engolir os comprimidos?... já não tinha forças para me levantar e ir buscar outra garrafa... a caixinha preta continuava ali e a minha mão já estava em cima dela... senti aquela textura (penso que era marfim) sob os meus trémulos dedos mas senti-a fria e um arrepio percorreu-me a coluna… ou teria sido outro tipo de arrepio?... não sei quanto tempo estive com aquela caixinha na mão... não sei quanto tempo demorei a tomar uma decisão... não sei quanto tempo a olhei com um turvo olhar... não sei porque razão não a segurei… dei por mim a olhar para ela sem saber para que é que ela servia e naquele momento apenas me apeteceu dormir… tão perto do derradeiro sono… tão desejado… ali tão à mão... reparei então que estava deitado sobre o lugar dela com o braço direito estendido para a mesinha de cabeceira segurando a caixinha preta que continha o passaporte para a derradeira viagem… tantas vezes assim estivemos… tantas vezes senti o seu calor, o seu respirar, o seu arfar… tantas vezes assim ficamos depois de fazermos amor... e, neste estúpido momento, repetia aquela posição estendendo a minha mão para uma viagem... não consegui conter o choro… não consegui aguentar as lágrimas… não consegui segurar a caixinha preta... não consegui partir... restou-me a certeza que no dia seguinte teria mais uma noite de frio..."

segunda-feira, 22 de março de 2010

domingo, 21 de março de 2010

Ensaio sobre a solidão

“…depressa me canso de mim… olho à minha volta e só vejo recordações… uma terna claridade invade o meu quarto e me rodeia de mansinho… já reparei várias vezes: vem sempre acompanhada do silêncio!… nunca soube o porquê de tal evento… é uma luz difusa, lenta, como que surgindo a medo e com ela, um opaco silêncio… algo que nada traz a não ser paz… mas trazê-la já é bom… e é nesses momentos que me sinto só… e sabem porquê?… porque não tenho com quem partilhar esse momento!… algo que sempre desejei fazer um dia na minha vida: partilhar a minha solidão… dizer a alguém: “…Vês?… Estás a ouvir?… A minha solidão está aqui, é isto que vive aqui comigo… Entendes?…”… mas nunca consegui e nunca o consegui porque nos momentos em que a solidão me visita eu nunca estou acompanhado… engano, estar acompanhado estou mas apenas de mim mesmo e dessa luz e desse silêncio… já somos três… estendo-me então no leito dessa luz e deixo-me levar pelo barulho do silêncio que me invade… nunca é tarde para experimentar novas sensações, só que esta é já demasiadamente minha conhecida e então apenas nos olhamos e nos aceitamos mutuamente… nada mais fazemos senão partilhar aquele momento, uma partilha a três numa solidão solitária de um só… estendido nela e com o silêncio deitado a meu lado, olhamos o tecto que lentamente se separa de nós em tons de cinzentos cada vez mais escuros… passo os braços pelo silêncio e aperto-o de encontro ao meu peito… sinto o seu respirar lento e compassado… é um som simpático, eu sei, mas ao mesmo tempo ousado na medida em que invade o som do bater do meu coração… e o silêncio deixa de ser silêncio para ser um baque surdo ritmado aqui, ao meu lado, deitado… no entanto, continuo abraçado a ele e ele sente-se bem porque acarinhado… é um abraço puro mas forte… ingénuo mas apaixonado… é apenas um abraço de silêncio compartilhado num leito de claridade a escurecer em lentos tons que tem o anoitecer… porém, já quando o tecto se separa de nós e nos abandona entregues que ficámos à luz das trevas que entretanto nos envolvem, o silêncio se aperta contra mim e me possui… penetra-me fundo e a respiração torna-se ofegante, sufocante… o que até então era um prazer compartilhado passa a ser dor e algo que corrompe… penetra-me cada vez mais fundo e a dor aumenta… o bater e o som do meu coração ultrapassa o silêncio que entretanto se esvai num orgasmo de sons delirantes de espasmos gigantes que se avolumam dentro de mim… o tecto já não existe, a obscuridade ainda persiste com mais intensidade… é um estar sem vida, sem morte e sem idade… apenas habita em mim numa eterna cumplicidade… respiro o espaço que me rodeia… e a escuridão cai sobre tudo e me envolve como uma teia… já tenho mais uma companhia… o doce sono vem de mansinho amparar meu corpo e cobre-o com carinho… adormeço lento, extenuado de tanta amargura, numa vã procura do próximo amanhecer que de novo me vai trazer o fim de tarde, neste terno ciclo de amor e ódio em que espero pela eternidade…”

sábado, 20 de março de 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

Dia do Pai

“…já faz quase 24 anos que partiste… Estás noutro local, um local para onde foste, um local de sossego, de paz, não é ?… Tenho saudades tuas, pai !… Lembras-te do dia em que nos disseste até breve ?… Lembras-te dos dias em que sempre estiveste a nosso lado, lembras-te de tudo de bom que se passou antes de ires, lembras-te de tudo de mau que se passou antes de ires ?… Recordas o dia em que eu nasci, recordas o dia em que passaste ao estatuto de pai ?… Sei perfeitamente que te recordas e que só por isso te valeu a pena viver; sei que viveste em função dos teus, daqueles que faziam parte da tua própria vida, daqueles que eram a razão da tua existência!… Sei muito bem o quanto sofreste por mim e por todos os teus; sei perfeitamente o quanto lutaste para que nada me faltasse, para que tudo estivesse sempre bem… Lembras-te do dia em que te faltou algo para que eu não sentisse essa falta ?… Lembras-te do dia em que não comeste para que eu tivesse comida ?… Lembras-te do dia em que poupaste nos cigarritos para que eu tivesse dinheiro para o meu tabaco ?… Lembras-te do dia em que tiveste de pedir a um amigo para teres dinheiro para mim ?… Lembras-te do dia, de todos os dias da tua vida em que passaste mal para que em todos os dias da minha vida eu passasse bem ?… Lembras-te ?… Sei que te lembras e sei que sabes que tenho saudades tuas… um beijo para ti, pai!…”

quinta-feira, 18 de março de 2010

A minha cidade

"... passeio pelas ruas da minha cidade... um cheiro intenso a vida, um odor repleto de vivências, aquilo a que chamo de experiências, de seres contidos em si mesmos e de seres virados para o para lá de si... pessoas que passam e pessoas que estão... vivem e não sabem que vivem porque apenas são... mas olho e vejo ao meu redor essa vida que não se vê e que não sai nos noticiários dos jornais televisivos nem nas parangonas dos tablóides... cheiro o perfume da urina nas esquinas e o sabor do odor do peixe frito nas varandas... o exalado pólen que vem das faias e das margaridas... o zunir das abelhas... vejo aquela mãe naquela varanda de peito de fora a amamentar o seu filho... vejo aquele miúdo traquina descendo a rampa no seu triciclo... os trilhos do eléctrico apanham um tacão desprevenido... e o senhor João da Camisaria Moderna, à porta, a todos que passam, dirige o seu cumprimentar sorridente... e ali vai a varina de cabaz à cabeça apregoando o carapau e a sardinha... no café do senhor José, o Soares está sentado a tomar a sua meia de leite com uma meia torrada e ao lado a senhora Miquelina assoa o nariz ao avental enquanto espera pela filha que foi ao hospital com o neto que havia rachado a cabeça a jogar a bola ali para os lados dos Guindáis... a vida percorre-me as veias como eu percorro a vida pela minha cidade... o Austin do senhor Carvalho acabou de passar e o fumo do escape aquece o chão que piso... a minha cidade tem vida e ninguém dá notícias dela... a vida não é notícia; esta apropria-se da morte que lhe dá valor e a desgraça vende; a guerra faz subir as audiências e o terror instala-se e provoca frenesim e a adrenalina sobe na pesquisa de mais um caso escabroso para contar... a minha cidade não tem notícias para dar... a minha cidade está viva e não vem nos jornais nem aparece nas televisões... e a minha cidade não tem nome nem vem no mapa dos homens... está apenas no meu coração..."

quarta-feira, 17 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Recordando o meu avô Nogueira

Viveu uma vida plena: cheia de valores morais do mais elevado que eu já conheci; viveu no seio da sua família que defendeu até ao último dos seus dias; viveu a harmonia do bem em companhia com a doçura da paz, mas ao mesmo tempo da ordem e do respeito por si próprio e pelos outros; homem com H grande, respeitador dos seus deveres e dos seus direitos, nunca ofendeu e nunca se sentiu ofendido; sempre perdoou e talvez também tenha sido perdoado se de algum pecado o tivessem acusado...
Viveu conforme a vida que lhe foi proporcionada e aceitou que a mesma tivesse tido o bom e o mau que ele soube enfrentar e dar de si próprio na defesa do bem comum nomeadamente na defesa de todos os que dele dependiam.... Ver mais
Hoje, mais de 50 anos passados da data do seu último dia neste mundo, ainda sinto uma enorme saudade daquele que foi meu "amigo" muito especial, um amigo daqueles que nunca se perdem, daqueles que estão e para sempre ficam na nossa memória, daqueles que recordamos com muito amor e carinho, daqueles que lembramos com orgulho por terem sido "dos nossos" !
Hoje, ao vir aqui lembrar a sua existência, apenas quero prestar a homenagem que nunca lhe prestei, a homenagem de vos dizer o quanto gostei daquele homem que soube sempre indicar-me qual o caminho a seguir e qual o caminho a evitar; nunca me proibiu de fazer isto ou aquilo, apenas me dizia que pensava ser melhor para mim se eu o fizesse daquela determinada maneira: teve sempre razão, pois ainda hoje sigo os seus eternos conselhos.
Ao vir aqui lembrar, não o seu nome, pois não o conheceram e portanto o seu nome não interessa, mas sim a sua memória, pretendo apenas relembrar com amor aquele que representou para mim algo de muito especial, na medida em que tive o privilégio de assistir ao momento crucial da sua partida, ao momento muito especial em que ele deixou de existir fisicamente para passar a existir, para todo o sempre, na nossa memória, na memória que nunca nos deixará também até ao último dos nossos dias.

....
e foi assim:



Tinha eu treze anos quando ele acamou com uma dessas doenças que não perdoam, mas que ele aceitou, consciente da sua pequenez neste mundo, consciente que aquela era a vontade de alguém mais forte que toda a força desta vida, para aquém e para além desta que temos.
Durante dois anos houve momentos de dor e houve momentos de paz; nesses momentos mais felizes de paz, lá ia eu de mão dada com ele passear um pouco para aliviar a carga psicológica que ele sabia carregar e aguentar firme como uma rocha; pequeno de estatura, e magro para além da magreza da própria doença, ele dava aqueles passos com a firmeza de um homem que nada tinha a temer e tudo tinha a enfrentar; ele dava aqueles passos com a firmeza de um homem que não tem medo de nada, nem daquilo que ele já sabia ter de enfrentar um dia.
Os seus passos pequenos, mas firmes, faziam compasso com os meus, ainda pequenos também pela idade ainda de criança, mas sentia-me como que o guardião daquele homem que naqueles momentos estava à minha responsabilidade e isso dava-me uma grande felicidade por estar a seu lado; também eu tinha consciência da doença que o minava pouco a pouco, também eu tinha forças para enfrentar aquela estranha harmonia de paz que nos rodeava aos dois; uma paz diferente, um bem estar compartilhado e interligado pelas duas mãos que se davam uma na outra, como dois cúmplices conscientes do "crime" que estavam a cometer a bem da harmonia e da paz de espírito, pois era carinho o que nos rodeava e envolvia.
Mas o dia da partida (ou da chegada como ele dizia às vezes por brincadeira) estava próximo. E quando esse dia surgiu ele teve consciência desse facto e soube-o enfrentar com uma dignidade que ainda hoje respeito e sempre respeitarei.
Deitado na sua cama e eu sentado a seus pés ele me olhou: os seus lábios já muito finos, mas firmes, disseram: "Vai chamar a tua Avó". Corri pelo corredor e fui chamar a minha Avó que, como sempre (toda a sua vida), estava agarrada aos tachos no fogão de lenha; na cozinha pairava um cheirinho a sopa quente (Meu Deus, que saudades !).
"Bó.. o vô chamou-a."
Ela largou o fogão, limpou as mãos ao seu avental e dirigiu-se para o quarto onde ele estava; segui-a logo.
Ela entrou no quarto e eu fiquei à porta vendo.
Naquele momento, todo ele se transformou: na sua frente estava a sua Maria de todo o sempre, a Maria que sempre o acompanhou e que lhe deu as quatro filhas que ele tanto amou, a Maria que tantas vezes ele arreliou e ela perdoou. Na ombreira da porta eu assisti: a sua face pálida ganhou cor, os seus olhos pequeninos brilharam de plena felicidade e a sua boca se abriu com um enorme sorriso ( o maior e mais bonito sorriso de felicidade que eu já vi em toda a minha vida !) e disse: " Maria, senta-te aqui."
Minha Avó se sentou à cabeceira da cama e ele com o mesmo sorriso disse já numa voz mais apagada: " Abraça-me."
Minha Avó o entrelaçou e eu vi os seus olhos pequeninos fecharem-se para todo o sempre, acompanhado com aquele sorriso lindo de felicidade !


Devia-te esta homenagem, Avô !

O teu neto Joaquim

segunda-feira, 15 de março de 2010

domingo, 14 de março de 2010

Diálogo com a Serenidade

“... a calma tinha-se aproximado de mim como não me conhecesse... eu já a conhecia há muito pese embora os grandes momentos em que não a via ou não me encontrava com ela... porém, naquela vez, ela fez de conta que não sabia quem eu era... aproximou-se mansamente e como quem não quer a coisa, saudou-me ao de leve com um leve acenar pela passagem, pelo encontro... não lhe liguei demasiada importãncia mas educadamente correspondi ao seu aceno e sorri-lhe... foi nesse momento que ela olhou para mim e, de chofre, me perguntou: - Porque sorris?... Naquele instante não encontrei resposta mas uns segundos após, saiu-me uma frase lenta e suave: - Porque não haveria de sorrir?... Acho estranho, disse ela: Estás sempre preocupado, cheio de problemas, a tua cabeça é um vulcão, a tua alma desespera, o teu coração bate e os teus olhos não choram... Pois, respondi eu, eu sei mas por vezes caio em mim e entendo que de nada me vale o lamento; por certo que estou errado quando desfaleço e sentado ou deitado me concentro nas agruras da vida; depois penso que a vida é apenas aquilo que dela fazemos, aquilo que dela queremos, aquilo que dela podemos tirar... a vida nada nos dá excepto ela mesma, ou seja, ela se nos entrega numa única vez e após instalada em nós, somos nós mesmos que a gerimos... temos esse poder, o poder de moldar os dias, as horas, os minutos e até mesmo os segundos dos nossos momentos aqui e agora, ontem e, quem sabe senão ela, também amanhã... somos nós que decidimos enfrentar ou não o momento que se nos depara, seja ele bom ou mau... é apenas uma questão de escolha... mas tu não eras asssim, disse-me ela, a calma... sim, eu sei... na verdade, a vida foi tão diversa e tão cheia de coisas e coisas que houve vezes em que não te consegui enfrentar ou mesmo aceitar e desesperei... porém, houve também momentos em que soube que me podias ajudar... por isso te sorri agora... sei que me podes inundar e tornar-me pleno de mim mesmo e conceder-me ainda mais a capacidade de me dar ainda mais do que já tentei... sei que me ajudarás... porque me trazes a sabedoria, a sensatez, a alegria, a ternura de me saber feliz ao sentir que amo, que o caminho que percorro é o único que me pode serenar, o único que me pode pacificar, a caminhada plena para amar... e, com amor, se ama e com amor se perpectua a nossa vida, mesmo para além da morte... por isso, hoje, te sorrio por saber o quanto amo quem amo, quem me dá a plenitude da serenidade, num amar terno e seguro, forte e puro, real que de tão real, a ti o juro...”

sábado, 13 de março de 2010

sexta-feira, 12 de março de 2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

quarta-feira, 10 de março de 2010

Busca

"... procuro em todos os poros do meu corpo a tua presença... vasculho a penugem que me cobre na busca de um traço teu, de uma marca deixada na selva do meu corpo... uso a mente na concentração do pensamento de todos os momentos vividos para os reencontrar em mim... uso a imaginação e penetro nas minhas artérias, nos meus músculos, nos meus tendões... tento ver as marcas que a tua estadia em mim deixou... minuciosamente, uso todos os meus sentidos: olho-me completo, milímetro a milímetro, cheiro-me, saboreio a minha pele e ouço o bater do meu coração, toco-me, acaricio-me... e vejo-te em mim, e sinto o teu cheiro a pétalas... o meu palato sente o sabor doce dos teus lábios, do teu beijo, do teu sal... ouço o sussuro das tuas palavras nos meus ouvidos e abandono-me aos teus devaneios... são pequenos nadas do meu dia a dia na procura de ti sempre presente em mim... são pequenos nadas da minha vivência enquanto tento olvidar os pequenos nadas da nossa ausência... olho-me sempre e vejo-te... e a tua presença é constante mesmo quando não estou a teu lado, mesmo quando não somos um só e nos fundimos de tal forma que tudo o que és fica indelevelmente gravado em mim..."

terça-feira, 9 de março de 2010

segunda-feira, 8 de março de 2010

Para o Dia Internacional da Mulher



...a minha oferta de uma Blue Simphony

domingo, 7 de março de 2010

Primeiro

"... havia uma necessidade enorme de estar lá... não era somente desejo, era mesmo imperativo, quase mais que obrigatório... mas sentia que as pernas não se moviam e os braços estavam caídos numa postura de desalento... deixei-me ficar assim ainda mais um momento... tentei, então, mais uma vez, caminhar naquela direcção e fiz um esforço enorme para conseguir mover um pé... sabia que nem era necessário ter fé, bastava mover o pé... senti que uma fina dor me percorria a coluna mas nem por isso deixei de tentar... era preciso ir, era preciso caminhar... no fim do caminho estava apenas a meta a atingir mesmo sem saber qual ela era; no entanto, era certo saber que estava no fim da estrada, no meio do arvoredo... olhei em frente, sem frio, sem aquele frio do medo... havia apenas uns braços abertos e um sorriso na face; e uns olhos brilhando... ouvia um som repetido, uma batida ritmada... esse som chamava-me, clamava por algo que eu não sabia ser o que era... num tremendo e último esforço a minha perna avançou e senti que a coluna se fixou... houve uma espécie de tontura mas o esforço valeu a força precisa para fazer avançar o outro pé... nesse momento senti-me cair mas não cheguei a tocar o chão... uns braços fortes enlaçaram-me e elevaram-me no ar... só muitos anos mais tarde vim a saber que aquele tinha sido o meu primeiro passo..."

sábado, 6 de março de 2010

sexta-feira, 5 de março de 2010

Fiel companheiro

“… chamava-se Ben-Hur… não tinha raça certa e era preto… hoje o meu Black faz-me lembrar um pouco esse meu primeiro cão… eu tinha na altura os meus 5 anos e me lembro muito bem dele… tinha a sua casota ao fundo do quintal junto aos galinheiros e ao pombal… (já naquele tempo o meu pai era columbófilo e de muito cedo a minha paixão pelos pombos se revelou que mais tarde, vim também a interessar-me pela modalidade)… servia de guarda mas de dia andava solto pelo quintal… já contei no meu antigo blogue algumas histórias do meu actual Black mas sobre este meu primeiro companheiro ainda não havia escrito algo sobre ele… quando os meus pais saíam de casa e eu tinha de ficar, ele o Ben Hur ficava comigo dentro de casa… então, inocentemente, brincava com ele e recordo que o seu corpo era maior que o meu… recordo que um dia a brincadeira me cansou e eu adormeci deitado no chão do corredor… ao meu lado o Ben Hur tinha-se deitado com a pata debaixo do meu pescoço e naquela posição ficara até os meus pais chegarem… acordei com o rosnar do bicho… meus pais queriam pegar em mim mas o cão não o permitia… talvez dentro dele se travasse uma batalha: a quem obedecer?... Ao dono, meu pai, ou defender a posição do seu fiel companheiro que era eu?... Recordo de me ter levantado e ao mesmo tempo ele se levantou também e se sacudiu, como é costume deles quando saiem da água, como para desentorpecer os músculos que deveriam estar exaustos da posição ora assumida… não tenho uma recordação muito fiel do olhar dele mas lembro-me do meu, dez anos depois quando ele morreu após prolongada doença e já cego não deixou de olhar para onde eu estava a ver os seus últimos momentos… não me via mas sentia-me… quando tombou o focinho preto no cimento do chão, os meus olhos não contiveram as lágrimas… e, sinceramente, não sei porque me lembrei hoje dele, aqui e agora… talvez porque o latido lá fora do meu actual Black me tenha feito recuar 50 anos no tempo e lembrar-me do meu primeiro cão…”

quinta-feira, 4 de março de 2010

quarta-feira, 3 de março de 2010

Desnudo-me

“…vá, tirem-me tudo… eu me desnudo num gesto simples e urgente… tu e toda a gente… tirem-me tudo, tirem-me o corpo, a alma, o sorriso e a calma… tirem-me o juízo, a paz, a rectidão… tirem-me o siso, o beijo e o riso… tirem-me o sol e a lua… façam um longo rol… tirem-me tudo... eu me desnudo... tirem-me a pele, a voz, o coração... tirem-me as mágoas, as roupas e a saudade… tirem-me o peito, o respeito e a verdade… tirem-me o ontem, o hoje e o amanhã… tirem-me tudo mesmo que seja já... eu me desnudo… façam uma lista e de nada se esqueçam… façam revista… tirem-me tudo à chegada ou à partida... tirem-me tudo que eu me desnudo e à vossa disposição me ponho... mas, por favor, não me tirem o sonho...”

terça-feira, 2 de março de 2010

segunda-feira, 1 de março de 2010