sexta-feira, 2 de julho de 2010

Acerca dele

“...ele envelheceu um pouco nestes últimos tempos... nota-o quando olha o espelho ao desfazer a barba... interessante é notar também os pêlos brancos do peito... também não é para admirar... Mas a vida é assim, a vida prega partidas com as quais não se conta... A vida poupo-o durante muitos anos mas nestes últimos dez não foi fácil... Começou pela falência em 95 da sua empresa e os problemas inerentes e subsequentes deram chatices e as pressões provocaram danos... mais tarde, foram problemas do foro afectivo e a seguir problemas de saúde... Passou alguns maus bocados... Quando tudo parecia estar “resolvido” um novo factor destabilizante surgiu para lhe provocar novas dores de cabeça... Há já mais de um ano que ele vive só na companhia de duas velhinhas de 90 anos, sua mãe e uma sua tia... esta já se encontrava acamada mas tudo se ia resolvendo de forma consertada entre ele e sua mãe... porém, eis senão quando, sua mãe também cai doente mas sem doença, “cai” de cansaço, de velhice, de tempos demasiados de pesada vida ao longo de muitos e muitos anos... Ele é filho único e não tem mais ninguém a quem recorrer... tem os filhos mas estes estão um pouco longe e têm as suas vidas... sempre que podem e tal se torne necessário, eles o ajudam em casos específicos... No entanto, para o dia a dia, ali presente, ele está só... E sente-se só... Face aos acontecimentos, teve de criar uma rotina, pois os tratamentos, as medicações e outros factores a isso obrigam... assim, levanta-se por volta das sete e trinta... abre as janelas para que a luz ilumine o ambiente... liga o fogão... prepara a tia para a higiene matinal... depois prepara o pequeno-almoço para ela e termina com o refazer da cama e da limpeza do quarto... Segue-se idêntico tratamento para sua mãe ainda que não esteja incluída a higiene na medida em que ela ainda a consegue proceder de moto próprio...
Depois delas “arrumadas” ele vai “tratar” de si mesmo... Por volta das dez da manhã sai e vai fazer as compras que entende necessárias e toma o café da manhã (vício de longos e longos anos)... Regressa a casa e vai ao computador ver o que se passou durante a noite... lê os mails e escreve alguma coisa, pouca é certo pois é necessário ir fazer o almoço... Tem de fazer as “coisas” como faz no pequeno-almoço: primeiro trata da alimentação da tia e depois almoça ele mais a mãe... findo o almoço segue-se o arrumar da mesa e dos demais acessórios e o lavar da loiça... Por volta das catorze e trinta está “livre” e vai sentar o corpo para descansar a sesta... A rotina regressa por volta das dezoito horas e segue os mesmos termos até às nove... É nesta altura que ele se senta em frente do seu portátil e tenta distrair os seus nervos... nervos que se vão deteriorando não por um cansaço físico mas por um sentimento de impotência perante aquilo que a vida lhe deu... sente-se cansado por “dentro”... Então, fala dos “seus” pardais, do gato e do cão, do seu quintal e do sol que se põe sempre a oeste... fala das suas rosas, das nuvens e do vento leste... fala de tudo, menos dele e do “lobo” que há dentro dele… Fala de amor, do amor, de como amar sem posse nem destino... fala de amor incondicional e não o entendem... fala dos voos palermas dos pardais e escreve alguma poesia… Gosta de escrever contos, pequenos textos e alguns pensamentos... gosta muito de fotografia e gosta de as legendar... Fala sobre palavras… ama-as e ama as pessoas…
A resolução do problema passa pelo provável internamento da tia, mas tudo leva o seu tempo neste burocrático país de papéis e petições... Entretanto tem de ser assim...
Às vezes nota-se nele um desânimo e uma tristeza latente... Mas sente-se que a tenta ultrapassar; vê-se muitas vezes um sorriso aberto nos lábios e os passeios pedestres que ele faz ao meio da tarde servem para desanuviar a tensão acumulada durante o dia... Diariamente lhe perguntam como é que vão as doentes... invariavelmente e a sorrir, responde sempre da mesma forma: “Obrigado, as minhas velhinhas estão bem!...”
...
(P.S. - este texto foi escrito em 2003... em 2004 a tia faleceu e ficou só com mãe...e há cinco anos que ele se encontra nesta "prisão", neste túmulo de silêncio... mas ainda não parou de escrever... continua a falar sobre o Amor, sobre as flores, sobre a Amizade... mas vê-se que está cansado... vê-se que a liberdade que ele tanto necessita não o habita... prende-o...)

1 comentário:

Isabel Vilaverde disse...

Depois de ler atentamente o teu texto, quero dizer-te que compreendo a tua solidão. De certa forma, também me sinto "presa" dentro de uma liberdade que aparentemente me habita... minha alma gémea... estou contigo, um beijo e um sorriso.